Thomas Morus escreveu “Utopia” no
século XVI, na Inglaterra sob o reinado de Henrique oitavo e sob as influências
do humanismo e do renascimento. Seguindo o exemplo de outros autores
contemporâneos a ele, Morus utilizou-se de seu talento literário e de seu lado
irônico para tecer profundas críticas às realidades europeias do século XVI.
O autor deixa claro para os
leitores que a fabulosa ilha de Utopia representa na verdade uma realidade
totalmente oposta à vivida na Europa Ocidental durante o século XVI. Fica claro
também que a mentalidade de autores como Thomas Morus e Erasmo de Roterdã estão
imbuídos do pensamento greco-romano “recém redescoberto”. Além disso, outros
elementos como a descoberta de um “novo mundo”, a invenção da imprensa e o
racha na unidade da Igreja configuram-se como elementos que abalaram as velhas
instituições da Europa medieval. As principais críticas feitas ao longo da
Utopia estão relacionadas à propriedade privada, a nobreza, e ao sacerdócio.
Thomas Morus começa sua obra com extensos diálogos entre os
personagens, mais especificamente entre ele (Morus), Pedro Gilles, Rafael
Hitlodeu e John Clement. Podemos dividir os temas abordados por eles durante o
dialogo em três: Papel do filósofo na vida política, análise do Regime
(feudalismo, direito, religião e poder), e o dinheiro como causa corrupção.
Fazendo referência ao primeiro tema (filósofo na vida política), o
autor Ricardo Hiroyuki Shibata deixa claro que Morus, através de seus
personagens, vai defender um dos pensamentos básicos dos humanistas:
“Como se sabe, a grande
bandeira defendia pelos humanistas foi aquela em que eles mesmos se
consideravam os mais aptos dentre todos os cidadãos da república para fornecer
conselhos de ordem governativa....” (A CONTENTIO DO LIVRO I DA UTOPIA DE MORUS
pagina 3 e 4 )
Ao se recusar em servir de conselheiro aos reis de sua época,
Rafael Hitlodeu evidência uma contradição vivenciada pelo autor, pois o próprio
Thomas Morus era conselheiro de um rei inglês. Thomas deixa essa contradição
explícita na fala de Platão:
“A humanidade. Será feliz
um dia, quando os filósofos forem reis, ou quando os reis forem
filósofos”.(Utopia Thomas Morus página 19).
A segunda grande temática debatida nos diálogos é referente às ao
sistema feudal, ainda muito presente durante o século XVI, e suas instituições.
O autor aponta como principal crítica ao sistema de justiça do antigo regime a
“mão de ferro” imposta aos cidadãos, pois o assassinato e o roubo eram punidos
da mesma forma (com a pena de morte). Mais uma vez o autor mostra estar sendo
influenciado pelo pensamento Greco-romano ao apontar como solução desse
problema a justa medida entre delito e pena (concepção desenvolvida por
Aristóteles). A nobreza feudal, junto ao clero, serão os responsáveis por criar
na população uma parcela de seres com maus hábitos e sem ofício, sendo,
portanto classificados como “totalmente inúteis à sociedade”. A riqueza de
ambas as camadas sociais (clero e nobreza) vai estar ligada aos monopólios e
oligopólios. No terceiro assunto abordado pelo diálogo estão as questões
relacionadas à origem da miséria e da violência vivida pela população européia
durante o início do século. Segundo o autor, a gênese dos problemas sociais era
a concentração de riqueza nas mãos de uma pequena parcela da população. Isso
fica bem exemplificado no caso da Inglaterra, onde:
“Os inumeráveis rebanhos de
carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra. Estes animais, tão dóceis e tão
sóbrios em qualquer outra parte, são entre vós de tal sorte vorazes e ferozes
que devoram mesmo os homens e despovoam os. Campos, as casas e as
aldeias”.(Utopia Thomas Morus página 11)
Em relação à primeira parte do livro, já é possível observar que
por meio de um diálogo imaginário entre personagens, Morus se colocou de
maneira crítica enfrentando os problemas que ocorriam em sua sociedade. Ele
deixa claro também que o papel do filósofo dentro dessa sociedade é antes de
mais nada intervir o máximo possível em prol do “bem-comum”. A Ilha de Utopia
descrita por Thomas Morus no capítulo seguinte irá surgir em resposta a essa
dura realidade, pois segundo o filósofo György Lukács:
"Toda utopia é
determinada, por seu conteúdo e orientação, pela sociedade que ela repudia;
cada uma das suas contra-imagens histórico-humanas se refere a um determinado
fenômeno do hic et nunc histórico-social”.(György Lukács)
Ao
ler a descrição feita por Thomas Morus no capítulo dois de seu livro, podemos
ser levados a pensar que a deslumbrante ilha de Utopia representa uma sociedade
totalmente liberta dos valores e crenças da Europa Ocidental. Contudo, ao fazer
uma leitura um pouco mais atenta é possível perceber que Morus deixa evidências
que possibilitam a percepção de seu caráter extremamente religioso e
eurocêntrico. Ainda fortemente ligado às percepções do antigo regime feudal, o
autor diz que os habitantes de Utopia antes de tudo devem trabalhar a terra, a
fim de produzir não seu sustento, mas também garantir o sustento e a riqueza de
toda a Ilha. Também na questão religiosa é possível observar os laços com o
antigo regime, pois mesmo havendo o livre culto entre os
habitantes é preciso chamar Deus por um único nome (Mitra). Sustento minha
análise utilizando as palavras de Adolfo Sanchez Vazquez:
“Não existe utopia pura, à
margem da visão crítica e dos valores que a orientam, caso se aspire a realizar
na alternativa social a realidade criticada. Neste sentido, toda utopia supõe
ou traz entranhada certa ideologia”. (Vázquez, 2001, p. 363).
O termo Utopia (“lugar nenhum”) ganha nas palavras de Thomas Morus
um re-significado. Ao compararmos o “novo mundo” descoberto com as grandes
navegações do século XV com a “velha” Europa ocidental, vamos perceber que ele
realmente não é “nada” (em termos materiais), e justamente por ainda estar em
seu estado “primitivo” é que se torna possível a Utopia. O mundo utópico
cristão via no novo mundo uma espécie de paraíso na terra, pois seus habitantes
(os índios) eram simples, pobres, despudorados e não haviam sido tocados pelo
“pecado original”.
Mesmo nessa fabulosa ilha idealizada por Morus podemos encontrar
elementos reforçadores de hábitos e costumes do antigo regime como por exemplo,
as questões relacionadas ao trabalho na terra:
“Há uma arte comum a todos
os utopianos, homens e mulheres, e da qual ninguém tem o direito de isentar-se,
é a agricultura. As crianças aprendem a teorianas escolas e a prática nos
campos vizinhos da cidade. (Utopia Thomas Morus página 33)
Podemos
assim concluir que o ideal de utopia criado por Thomas Morus surge de um
profundo diálogo entre ele com seu tempo histórico e seu ideal religioso eivado
de compassos e descompassos entre a realidade e a Utopia.
Valdeir Conegundes
Fonte:
Shibata, Ricardo. A contentio do livro I da utopia
Della Fonte, Sandra / Loureiro, Robson / Mari, Cezar. Utopia e ética: a contribuição de Thomas Morus
Morus, Thomas. Utopia
Vazquez, A.S. Entre a realidade e a Utopia: ensaios sobre política, moral e socialismo
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